Deveríamos estar em busca do equilíbrio
Deveríamos
estar em busca do equilíbrio
Por Alessandra
Leles Rocha
Lamento; mas, os fenômenos sociais
contemporâneos não comportam análises superficiais. É preciso ler a história na
sua linha do tempo, dando atenção a cada trecho, a cada reviravolta das
conjunturas, para se entender como se estabelece a tecitura das entrelinhas.
Assim, pretendo nas ideias que se
seguem trazer uma reflexão desse tempo presente, tomando como ponto de partida
uma consideração certeira de Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês,
sobre dois aspectos fundamentais para enxergar a dinâmica da contemporaneidade.
Segundo ele, “Há dois valores
essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória,
recompensadora e relativamente feliz. Um é a segurança e o outro é a liberdade.
Você não consegue ser feliz, você não consegue ter uma vida digna na ausência de
um deles, certo? Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança
é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar
com isso. Então você precisa dos dois”.
Acontece que equacionar esses
dois valores, a fim de se obter um denominador comum, é um desafio que
ultrapassa os limites contemporâneos. Ao se mergulhar profundamente nessa
ideia, logo se percebe que historicamente as marcas da desigualdade sempre
interferiram diretamente no alcance desse equilíbrio.
Na medida em que se têm dois
grupos divididos pelas expressões de poder, ou seja, aqueles que têm e aqueles
que não têm poder, dominadores, mandatários, tiranos, opressores, ditadores, serão
os que irão determinar o funcionamento desses valores dentro da sociedade. Dentro
de uma lógica que não interfira, obviamente, na manutenção das suas regalias, privilégios,
crenças e convicções.
Diante dessa perspectiva, comecei
a observar o frenesi dos veículos de comunicação e de informação, com debates e
análises, em torno da reeleição do Presidente da República de El Salvador, um
pequeno país da América Central, que enfrenta sérios problemas no campo da
pobreza, da desigualdade socioeconômica e da criminalidade.
Bem, o motivo da agitação é
simples. Essa reeleição significa a reafirmação do ideário da ultradireita na
América Latina, tendo em vista de que o Presidente da República se apropriou da
pauta da segurança pública e do combate à criminalidade, para constituir uma
governança arbitrária, autoritária, de ruptura com os direitos civis e sociais
para a população, de redefinição do ordenamento jurídico do país e de substituição
dos membros da Suprema Corte.
De modo que “atualmente, cerca
de 2% da população do país está atrás das grades. Em um país de 6,3 milhões de
pessoas, seu governo fez mais de 70.000 prisões” 1.
No entanto, ele dispõe de um índice de popularidade elevadíssimo na América
Latina; sobretudo, entre os apoiadores e simpatizantes da ultradireita. O que
significa gente da Direita e todos os seus matizes.
Por mais estranho que possa
parecer, essa situação é simples. A ideia de abstrair do inconsciente coletivo
a opção de escolha entre uma coisa e outra, para trazer à tona o imperativo de
uma coisa ou outra, não permite que muitos percebam que estão abrindo mão de
dois valores essenciais, liberdade e segurança.
E esse é um dos objetivos da
ultradireita, mundo afora. Ela se apropria do caos gerado pelas mais diversas
formas de insegurança social, para dizer que sua meta será combater severa e
rapidamente esse mal. No entanto, ela se abstém de dizer que irá utilizar do
discurso de que “os fins justificam os meios” e, por isso, também irá
impor limites às liberdades.
A partir desse movimento inicial,
todo o restante das pautas ultradireitistas chega por arrasto. O que significa
abrir espaço para uma construção política de caráter xenofóbico, racista,
misógino, homo/transfóbico, etarista, aporofóbico. Simplesmente, porque
restringidas às liberdades, os direitos civis e sociais, não se tem
oportunidade para oposição de quaisquer tipos e naturezas.
No entanto, trancafiar milhares
de pessoas em presídios não tem apenas um caráter punitivo, de segurança
pública. Não é surpresa, ou pelo menos não deveria ser, que o perfil dos transgressores
das leis é, na maioria das vezes, de pessoas oriundas das camadas mais frágeis e
vulneráveis da população. Que por forças diversas da realidade cotidiana acabam
se enveredando por caminhos infratores e passando a viver atrás das grades.
As prisões, como configuradas na
contemporaneidade, na verdade, não são estritamente espaços de
responsabilização ou ressocialização. Por conta de falhas eventuais ou do próprio
sistema, há muitos que não deveriam estar lá; mas, estão, porque faz parte de
um processo de depuração e banimento social, largamente aplaudido pela Direita
e seus matizes.
Infelizmente, para não ter que
lidar com o monstro histórico, de sua própria criação, que são as diversas
manifestações da desigualdade social, esse espectro político-ideológico
encontra no encarceramento, tantas vezes compulsório, a saída para invisibilizar
as raízes das suas mazelas sociais, para não terem que se debruçar sobre o
assunto.
Com base em rótulos e estereótipos
profundamente discriminatórios e pejorativos, os alvos do encarceramento são indivíduos
que afetam, de alguma forma, os padrões socioeconômicos defendidos e
estabelecidos pelos detentores dos poderes sociais, ou seja, a Direita e seus
matizes.
Aliás, esse é um aspecto importante,
porque a presença desses indivíduos nos espaços decisórios e de poder, costuma
ser justificada por seu empenho no desenvolvimento e no progresso do país. O
que não se pergunta, ou questiona, é o fato de que o resultado desse empenho
seja fruto do trabalho árduo, dos suores e dos esforços, justamente das camadas
mais simples e desprivilegiadas.
São esses cidadãos, considerados
subclasse, subgente, invisíveis, que oportunizam a manutenção das riquezas e
dos poderes por gente denominada como bem-nascida, letrada, abastada. Mas, isso
ninguém fala, ninguém discute. Fica no campo do imaginário colonial,
pós-colonial, das histórias do mundo.
De modo que a roda da vida
continua girando no mesmo padrão, permitindo que tantas vidas estejam
submetidas à precarização do trabalho, às práticas análogas à escravidão, à
falta de acesso aos seus direitos cidadãos, em pleno século XXI. E quando não é
assim, são privadas da liberdade sem quaisquer justificativas, sem razões de
ser.
Bem, já dizia José Saramago, “Se
podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Se “tudo como dantes no quartel
de Abrantes”, então, o desempenho da Direita e seus matizes, mais ou menos
extremistas, tem colaborado para o acirramento das desigualdades e, por consequência,
a reafirmação dos desequilíbrios e tensões sociais. De modo que eles nem sequer
cogitam a possibilidade de mudar esse panorama.
O próprio caos lhes legitima, então,
tomam para si, a pauta da segurança pública; embora, não admitam sua
responsabilidade a respeito. De repente, segurança se torna sinônimo da mão de
ferro, da tirania, da arbitrariedade e do encarceramento popular. Afinal, essa práxis
constrói estatísticas, fatos numéricos, que a legitimam e fazem convencer uns e
outros do custo / benefício imposto pelo seu governo.
Assim, convencidos de que a perda da liberdade é um mal necessário para se ter segurança, a Direita e seus matizes têm nas mãos o pretexto perfeito para justificar a consolidação de uma governança antidemocrática, ditatorial, como tantas já se viu descritas nas páginas da história. Por isso, lembremo-nos das palavras de Umberto Eco, “O primeiro dever do bom inquisidor é o de suspeitar antes dos que te parecem sinceros”.