O cabresto da mercantilização humana

 

O cabresto da mercantilização humana

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A bizarrice que se enxerga em todas as direções do mundo contemporâneo, não é aleatória. Tem método. E, infelizmente, tem seu ponto de partida na mercantilização das relações humanas, sob a forma de um verdadeiro toma lá dá cá, que abstrai a análise, a reflexão e a criticidade sobre as situações da vida para focar estritamente nos eventuais ganhos, vantagens e/ou benefícios que os outros podem lhe render.

Vale dizer que a mercantilização em si, não é decorrente da contemporaneidade. Na verdade, ela sempre existiu e seus registros são diversos ao longo da história do mundo. Mas, na contemporaneidade ela adquiriu um status de extrema relevância para a reafirmação dos jogos de poder pautados no individualismo e no narcisismo cada vez mais exacerbados dentro da sociedade de consumo, que subverteu por completo a lógica do TER e do SER.

Assim, na medida em que os seres humanos se permitem vender e comprar, a solidez das relações se esfacela. Considerando a velocidade de trânsito da vida contemporânea, dos acontecimentos, o grau de instabilidade e de fragilidade de uma relação mercantilizada é assustador. Porque os laços, os vínculos, só permanecem estáveis se, e somente se, os ganhos, as vantagens e/ou os benefícios estiverem assegurados.

Para todo lado que se olha, então, há pessoas se analisando de cima para baixo com o propósito de identificar o que tem o outro como potencial de oferta. Bens, produtos e serviços tornam-se, dessa forma, parâmetros de análise e ranqueiam os indivíduos em escalas absurdas de importância ou desimportancia, a partir da lei da oferta e da procura. De modo que o senso de humanidade vai sendo perdido e substituído por um pragmatismo duro, seco, insensível e desumano.

E diante desse movimento, fico pensando, por exemplo, que heranças malditas da história brasileira, como a prática do voto de cabresto, não conseguem ser suprimidas e superadas pela força da própria metamorfose social. Está incrustado, absorvido, enraizado no inconsciente coletivo brasileiro, esse modus operandi de controle e vigilância social que se estabelece pela recorrente utilização da máquina pública e do abuso de poder econômico.

Simpatia comprada. Amizade e parceria forjadas pela troca de interesses. Elogios e aplausos ensaiados à custa de benesses. Mas, basta uma pequena rusga, uma divergência de opiniões, uma insatisfação qualquer, para que o rumo da prosa se torne outro e os aliados de hoje se transformem nos desafetos de amanhã. Afinal, essas relações são como diz a irônica expressão “firme igual prego no angu”.

Nesse contexto, quanto mais o tempo passa, mais elas ampliam o seu apetite voraz. Pois é, tornam-se verdadeiros poços sem fundo. Duram até o limite do esgotamento do que o outro possa lhes oferecer. Quando não tem mais nada para extrair, vão embora sem se despedir, sem dar qualquer satisfação, na busca de recomeçar o processo em outro lugar. Querem mais. Sempre mais.

É importante ressaltar que, embora nada justifique uma relação humana pautada nesses moldes de extremo materialismo, os exemplos que transitam pelo mundo se movem por influências diversas. O peso descomunal da miséria. A fúria da persuasão. A ganância desmedida. A sede de poder desenfreada. Mas, no fundo, seja porque motivo for, um vazio existencial se apossa da identidade desses indivíduos.

Afinal de contas, o que é o resultado da mercantilização humana senão a sua objetificação e precificação? Ela anula e destrói a essência humana, corrompendo valores, crenças, princípios, sentimentos, emoções, para coisificar o indivíduo. E esse novo padrão passa a constituir o sistema do “vale quanto pesa” na sociedade de consumo, que descarta seres humanos, sem quaisquer constrangimentos ou cerimônias, quando esses perdem o seu valor capital.

Mas, não se engane em pensar que esse cenário resume a tal bizarrice! Não. Porque ela se desdobra por muitos outros vieses, inclusive, a violência. Infelizmente, essa dinâmica social sobre a qual estou falando traz um efeito muito semelhante a abstinência das drogas. Quando os indivíduos entendem que os ganhos, as vantagens e/ou os benefícios não estão mais assegurados, que eles não vão conseguir o que querem, eles se enfurecem.

Daí a necessidade que eles têm de se manterem movidos pela aquisição constante de bens, produtos e serviços, custe o que custar. Mais do que para satisfazer uma eventual miséria, persuasão, ganância ou poder, a implicação maior dessa necessidade é o seu aspecto narcísico, porque essas pessoas pensam, sentem, percebem-se e interagem com o mundo e as pessoas de uma maneira muito diferente e particular.

Desajustes e obstáculos nesse processo de mercantilização trazem a elas, portanto, um sofrimento, um conflito interior, imenso. Na medida em que elas se sentem diminuídas, inferiorizadas, insuficientes, desimportantes. Então, como uma tendência natural do ser humano, elas extravasam a sua incapacidade de administrar essa situação através das diferentes formas que a violência tem de se apresentar.

Desse modo, por uma breve reflexão como essa, já se torna possível perceber a dimensão das tragédias anunciadas que a mercantilização social nos traz diariamente. Como ela propicia um grau de deterioração das relações sociais inquestionável. Tanto do ponto de vista objetivo, quanto subjetivo. O que significa que ela tem cravado, cada vez mais profundamente, a linha tênue que separa a vida e a morte da própria humanidade.

Mas, como caixão não tem gavetas, tudo o que foi amealhado ficará. Empoeirando ao sopro dos ventos temporais. Guardados em lugares solitários e vazios de vida. Perdendo a significância que um dia pareceu exalar. Remoendo as dores que foram bem maiores do que as glórias que se supôs poder conquistar. Aprisionados em memórias, em lembranças, em idealizações vãs, dentro de almas que vagam sofridas e atormentadas por uma vida a qual não souberam desfrutar.