A capitalização das desgraças

 

A capitalização das desgraças

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A capitalização das desgraças humanas é um dos movimentos mais deploráveis do mundo contemporâneo; sobretudo, quando a intenção de criar situações que possam levar a isso, paira insustentável no ar. O exemplo mais recente repercute da 94ª entrega dos Oscars, em Hollywood; pois, um dos envolvidos em ato de agressão, durante o evento, declarou que só vai falar a respeito mediante pagamento 1. 

Infelizmente, os seres humanos parecem ter chegado ao fundo do poço, quando o assunto é a precificação da sua dignidade, do seu decoro, da sua privacidade, transformando-a em um espetáculo dantesco que só serve ao apetite voraz da insaciável contemporaneidade. Como se não lhes constrangesse, em nada, esse tipo de situação.

Viver já é, por si só, tão complexo, tão difícil. Acontece que ao se dispor a esse papel, a humanidade nem utiliza de meias palavras para demonstrar todo o seu apreço e afeição pelo dinheiro. Money... Money... Money...  Tornando o capital o centro das atenções.

De fato, a imagem com a qual me deparei na década de 1990, que mostrava várias pessoas de costas, com código de barras impressos em suas cabeças, e a mensagem “Em uma sociedade de consumo tudo se transforma em mercadoria”, parece cada vez mais assertiva. 

Na medida em que as pessoas se permitem viver na condição de coadjuvantes (ou, talvez, meras figurantes), enquanto o capital assume o status de protagonista da história, a realidade configura um processo de escravização tão brutal e repugnante que se torna impossível dimensionar o preço que será cobrado a respeito.

Quem diria que o ser humano se colocaria sobre um display, à venda a partir de diferentes maneiras! Corpo. Imagem. Força de trabalho. Voz. Conhecimento. Talentos. Habilidades. Competências. Emoções. Sentimentos. Comportamentos. ... Cada pedaço, material e imaterial, do seu ser está loteado, precificado e identificado por um código QR, como quaisquer mercadorias por aí.

Mas, o que ele não percebe ou, quem sabe, não queira enxergar e/ou admitir, é o fato de que antes de ser comercializado dessa maneira, ele se absteve por completo da sua identidade, da sua essência, da sua liberdade. Suas ações, pensamentos, escolhas, decisões, tudo foi voluntariamente condicionado aos interesses, necessidades, perspectivas, expectativas e conjunturas, estabelecidos pelo sistema social.

Na verdade, uma estrutura maior e mais complexa que faz de cada indivíduo uma simples peça no jogo da vida. Assim, nada do que acontece é tão genuíno quanto faz parecer. Os lances são medidos, são pesados, são milimetricamente desenhados a fim de que a rentabilidade dos movimentos se expresse pela habilidade em manusear as estratégias no campo da lei da oferta e da procura, como acontece com qualquer commodity.

Pois é, a contemporaneidade trouxe a raça humana para um verdadeiro balcão de negócios. Alguns valem mais. Outros valem menos. Alguns agregam mais. Outros menos. Parece chocante? Mas, é.

Como escreveu Immanuel Kant, “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite equivalência, compreende uma dignidade”.

Assim, ao subtrair a sua identidade, a sua dignidade, o ser humano se despiu de quaisquer mínimas noções de ética, de moral, de vergonha, de desconforto, ... Ele, agora, brada aos quatro cantos até onde alcança a sua desfaçatez, a sua insensatez, em nome do TER.  

Nada de regras. Nada de princípios. Todas as intenções (ou más intenções) estão imersas nas entrelinhas, mas em camadas superficiais, bastante perceptíveis, até para os mais distraídos.

E desse modo, muitos acreditam que conseguiram se fazer caber, de alguma forma, na humanidade. Que descobriram como lidar com as dinâmicas do poder, do controle, da dominação, da hierarquização, da discriminação ... Porque acreditam que “A liberdade de mercado permite que você aceite os preços que lhes são impostos” (Eduardo Galeano).

Mas, não é bem assim. Pessoas, com esse perfil, não conseguem viver no sentido exato da palavra. Apenas, sobrevivem, aos trancos e barrancos, segundo as imposições advindas da mercantilização, da precificação de sua própria natureza.

Ao olhar para o resultado desse processo pelo qual transita a humanidade, incluindo o seu lamentável adendo, manifesto pela capitalização das desgraças, só podemos concluir que a humanidade caminhou no sentido de uma nova direção para sua escravização.

Pois, “na sociedade há muitas pessoas tentando conquistar o mundo exterior, mas não o seu mundo interior. Elas compram bajuladores, mas não amigos; roupas de grife, mas não o conforto. Colocam trancas nas portas, mas não tem proteção emocional” 2. E isso só acontece, porque elas desconsideram o fato de que “tudo que tem um preço é barato. Só aquilo que o dinheiro não compra é realmente caro, e quem não adquiri-lo será sempre um miserável, ainda que seja milionário” 3.

De modo que a cada gesto reafirmado nesse sentido, apaga, com certo requinte de crueldade, um pouco mais da sua identidade, da sua alma, da sua liberdade, até que não reste mais do que um amontoado de papéis e moedas, os quais não têm quaisquer potenciais para deixar legado, nem história, nem recordações para ninguém.



2 Augusto Cury – O Futuro da Humanidade, 2005.

3 Augusto Cury – O vendedor de sonhos, 2008.