MERCADORIA...
MERCADORIA...
Por
Alessandra Leles Rocha
Eu poderia dizer que, ontem, foi
um capítulo triste da história nacional, em razão dos contundentes acontecimentos;
mas, fazê-lo estopim da reflexão me parece mais útil e producente. De certo
modo não surpreenderam alguns dos resultados manifestos. Talvez, por isso, eles
sejam até mais indigestos, porque apontam de maneira flagrante o grau de
deformidade imposto aos valores e princípios humanos.
Aqui e ali, por trás dos
acontecimentos contemporâneos, sempre se depura uma ânsia pela liberdade. Dia a
dia, dos mais simples aos mais complexos movimentos da sociedade, o que as
pessoas revelam de maneira consciente ou, muitas vezes, inconsciente é o seu
imenso e incontrolável desejo de ser livre. Totalmente sem amarras. Sem controles.
Sem limites. Como se isso pudesse mesmo ser possível.
Então, sem se permitir, ao menos,
o direito da dúvida ou da reflexão a respeito, segue a humanidade absorta
dentro do seu ideário, sem se dar conta de que caminha cada vez mais na
contramão das suas expectativas. Ao contrário de realidade, a sua liberdade não
passa de mera aspiração, o que leva as legiões a se frustrarem e se
martirizarem pela impossibilidade de alcançá-la efetivamente; embora,
permaneçam constituindo subterfúgios bizarros e repugnantes para não se darem
por vencidas.
Uma das explicações para esse fenômeno
é o fato da raça humana ter associado à sua liberdade à propriedade de riquezas
e bens materiais. Historicamente, a ideia do ter aponta para a possibilidade do
exercício de poder, de dominação, de controle, de superioridade, colocando o indivíduo
em uma posição única de liberdade. Em teoria, é como se estivesse em suas mãos
um passaporte, o qual lhe oferecesse livre acesso ao mundo, sem que para isso
ele precisasse demandar “maiores esforços”.
Assim, ao tecer essas
considerações eu sempre me recordo da imagem acima - várias pessoas de costas e
em suas cabeças um código de barras, com destaque para a mensagem “Em uma sociedade de consumo tudo se
transforma em mercadoria”. Simplesmente, porque ela consegue desconstruir
essa tal liberdade. A partir do momento em que os seres humanos se permitem ser
controlados pelas riquezas e bens materiais, eles se tornam cativos de um
complexo sistema. O que significa viver em função disso, independentemente, do
preço que lhe venha a ser cobrado.
Queiram ou não admitir, a raça
humana tem se colocado historicamente à venda de diferentes formas e conteúdos,
porque em algum momento a sobrevivência passou a depender disso. Pessoas vendem
a força de trabalho. Pessoas vendem a imagem. Pessoas vendem a voz. Pessoas vendem
o conhecimento. Pessoas vendem informações. Pessoas vendem influência. Pessoas vendem
segredos. Pessoas vendem decisões. ... Enfim, a humanidade com seu código de
barras está na prateleira dos mercados do mundo.
Portanto, tudo o que ela faz,
pensa, escolhe, decide, não é necessariamente uma expressão da sua liberdade. Ainda
que ela não admita, ela está presa, condicionada a se posicionar segundo
interesses, necessidades, perspectivas, expectativas, conjunturas, parcerias,
tanto de natureza própria quanto coletiva. É sobre esse panorama que se
configura a chamada “conquista de um
lugar ao sol”.
O que significa que os
sacrifícios, os esforços, as lutas diárias que o indivíduo empenha para sobreviver
e se visibilizar socialmente, não são tão genuínos quanto se tenta fazer
parecer. Por trás de cada interesse, necessidade, perspectiva, expectativa, conjuntura
e/ou parceria há seres humanos à venda por muito ou pouco recurso. Aliás, é
importante ressaltar que esse processo ultrapassa as fronteiras do micro, das
relações sociais cotidianas, e alcança as fronteiras do macro, com empresas,
corporações e governos. Direta ou indiretamente, não há um ser humano sequer
que não esteja, então, sobre esse balcão de negócios.
É tudo tão absurdo, tão surreal, que
é visível o descontrole presente nesse processo. Perdeu-se a noção da ética, da
moral, do constrangimento. Está tudo às claras, até mesmo, quando se rotula as
ações como secretas ou sigilosas. Sim, porque o fato de não poder expressar de
maneira objetiva e direta sobre um determinado assunto, já é sinal, mais do que
evidente, de que as regras e princípios foram, de algum modo, quebrados. De que
há segundas, terceiras ou décimas (más) intenções.
Talvez, por isso, o cotidiano se
pareça cada vez mais com um jogo de cartas marcadas. Mas, não apenas pelos
resultados objetivos e nefastos em si. O fato da existência de seres humanos com
seus “códigos de barras” não homogeneíza
a sociedade, como se poderia pensar, olhando para a imagem. Há sempre os que
valem mais e os que valem menos. Há sempre os quem têm mais para vender e os
que têm menos. Desse modo, se a liberdade pode não existir na perspectiva do ideário
humano, eles não podem, também, abrir mão da desigualdade. Afinal, isso
significaria perder a possibilidade do exercício de poder, de dominação, de
controle, de superioridade.
Portanto, a verdade é que a “mercantilização humana” não é um fenômeno
recente, restrito à contemporaneidade. Muito pelo contrário. Seres humanos
oprimidos, subjugados, escravizados, transitam pelas páginas da história há milênios.
E no Brasil não foi e nem é diferente. Sua experiência como ex-colônia portuguesa
relata isso muito bem.
Mas, esse tipo de mercantilização,
oriunda dos desdobramentos desencadeados pelas Revoluções Industriais,
ocorridas a partir da segunda metade do século XVIII, é ainda mais agressiva e
brutal. De modo que se estabelece um ciclo insaciável em torno do capital e de todas
as riquezas e bens materiais acumulados a partir dele. O ser humano foi alçado à
condição de escravo da produção e do consumo, vivendo sob o delírio de querer
sempre mais sem saber o porquê de seus próprios desejos.
No frigir dos ovos, é como
escreveu Erich Fromm, psicanalista e filósofo alemão, “O homem moderno vive sob a ilusão de que sabe o que quer, quando na
verdade ele deseja aquilo que se espera que ele queira”. Mas, ainda que à
sua revelia e com um certo atraso, chegará o momento em que ele será capaz de compreender,
com a devida exatidão, as palavras do milionário norte-americano Jean Paul Getty,
“Infelizmente só posso comprar o que está
à venda, senão há muito tempo que teria comprado um pouco de felicidade”. Assim,
aguardemos.