Uma distopia à brasileira
Uma distopia à brasileira
Por Alessandra
Leles Rocha
Jamais pensei que o mundo pudesse, tão
rapidamente, ficar à beira de uma distopia. Uma notícia publicada, hoje,
exemplifica bem essa realidade, “CPI
investiga tratamentos feitos sem autorização ou informação a pacientes e mortes
suspeitas não informadas aos familiares. Nove pacientes ‘cobaias’ morreram
durante a pesquisa, mas os autores de estudo da empresa só mencionaram duas
mortes” 1. O Brasil está diante, então, de um
contexto em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou
privação, motivadas por diferentes razões socioeconômicas que, de alguma forma,
acabam por cair no trivialismo bárbaro de uma normalidade que nunca existiu.
De repente, é como se a sociedade tivesse
perdido não só a compreensão da ética em si; mas, também, da bioética, que é um
campo de estudos dedicado aos problemas e implicações morais e jurídicas
despertados pelas pesquisas científicas em biociências e ciências médicas. Aliás,
tanto a literatura quanto o cinema têm se dedicado a trazer esses assuntos para
o cotidiano da sociedade mundial, estimulando uma reflexão a respeito sob
diferentes vieses. É o caso, por exemplo, dos filmes “Cobaias” (1997), “O Jardineiro
Fiel” (2005) e “Não me abandone
jamais” (2010).
O primeiro aborda a intenção governamental de
um determinado país em estudar o desenvolvimento da Sífilis nos negros para
comparar se eles eram biologicamente iguais ou diferentes aos brancos. O
segundo se refere ao trabalho das grandes empresas farmacêuticas e de um
governo, que utilizariam pessoas contaminadas pelo vírus HIV no continente
africano, como cobaias. E o terceiro é baseado no livro distópico de Kazuo Ishiguro, “Never let me go”, de 2005, sobre a
criação de clones humanos para a doação de órgãos.
Com esses panos de fundo, os roteiros são compostos por informações e questionamentos em torno das infinitas possibilidades de controle
dos seres humanos, do bloqueio a criticidade e o pensamento, do surgimento de
um automatismo alienante, os quais fazem romper os parâmetros éticos nas
relações sociais.
A questão é que nem tudo o que acontece de
grotesco e perverso no mundo, é verdadeiramente permitido enxergar. A forma
como os indivíduos são usados e manipulados diariamente por outros seres
humanos, há tempos, vem sendo justificada por uma ultrajante naturalização, que
tem como objetivo principal conduzir a uma abstenção do peso e do sofrimento de
lutar contra essa corrente de interesses degenerados.
De modo que por trás desse movimento há o que
Foucault explicou como Biopoder, ou seja, “uma
tecnologia de poder voltada para o ‘fazer viver’ e o ‘deixar morrer’, que será
um poder que vai se encarregar da preservação da vida, eliminando tudo aquilo
que ameaça a preservação e o bem-estar da população” 2.
Mas, quem decide o que é ameaça ou não a preservação e o bem-estar da
população? Esse é o ponto principal. Porque há sempre alguém a se apropriar de
argumentos próprios para exercer o Biopoder, ou seja, a controlar tudo e todos,
segundo seus próprios interesses, sua própria ética e sua própria moral. Isso explica
a razão de a vida se encontrar tão ameaçada; embora, permaneça declarada como
direito humano universal.
Isso aponta para uma relativização exacerbada
em relação à importância da vida. O limite entre viver e morrer está cada vez
mais por um triz. E não precisa ir muito longe para se encontrar exemplos desse
fenômeno no Brasil. Uma passada de olhos no Anuário de Segurança Pública/2021
traz o perfil das violências nesse contexto. Já o Observatório COVID-19, da
Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), revela o andamento da Pandemia em território
nacional. E assim, diversas outras entidades e Organizações Não-Governamentais
(ONGs) contribuem para dissecar os desafios para a vida da população
brasileira, em todos os seus matizes de raça, gênero, idade, escolaridade,
religião e status social.
Entenda,
se o mundo chegou a essa realidade absurda e irracional foi, em grande parte,
em razão do desconhecimento. Seja ele voluntário ou não. Ele é a
via mais rápida para a vulnerabilidade, porque torna as pessoas alvos fáceis. Não
bastam leis, códigos, declarações, doutrinas a afirmar e reafirmar o direito à
vida; é fundamental se interessar em saber, em conhecer, em entender como esse
processo acontece no mundo. Esse é o primeiro passo para resgatar a importância
que se dá a própria vida; mas, também, a principal barreira de contenção contra
as atrocidades que vieram sendo perpetuadas ao longo da história e permanecem, quando ninguém faz oposição a elas.
1 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/09/16/investigada-na-cpi-da-covid-prevent-senior-ocultou-mortes-em-estudo-sobre-cloroquina-apoiado-por-bolsonaro.ghtml
2 DINIZ, F. R. A.; OLIVEIRA, A. A. de. FOUCAULT: Do Poder Disciplinar ao Biopoder. Scientia, Sobral, CE, v.2, n.3, p.143-158, nov.2013/jun.2014.