Podemos respirar?!

 

Podemos respirar?!

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Será que os EUA podem respirar? Será que o mundo pode? O ex-policial que matou George Floyd foi condenado e, embora, isso represente um passo importante, é apenas um degrau na longa escada de transformação em relação ao racismo estrutural, que vigora em várias partes do planeta. A decisão amplia sim, as fronteiras para a reflexão e o debate em torno de uma questão que impacta a vida de milhares de seres humanos; mas, não é tudo.

Porque o racismo não é meramente uma discussão de posicionamento social hierárquico; mais ou menos importante, superior ou inferior, acima ou abaixo, ... Mas, a partir desse contexto é que se determina a importância da acessibilidade cidadã dos indivíduos, a garantia equitativa de seus direitos fundamentais, em relação a quaisquer outros indivíduos. Isso significa, portanto, que combater o racismo é a única possibilidade de se respirar e aspirar livremente, sem nenhum obstáculo.

O problema é fazer o coletivo social compreender tudo isso; visto que, o inconsciente identitário da população global carrega em si os traços marcados por todas as desigualdades, incluindo o racismo. A presença de poderes centralizados nas mãos de grupos considerados supremacistas contribuiu para consolidar a existência de grupos minoritários, com base exclusivamente na sua predisposição em considerá-los em situação de desvantagem social. O que não passa de uma perspectiva equivocada; mas, ao mesmo tempo efetiva, no sentido de garantir os espaços e lugares de fala dos supremacistas, minimizando o quanto possível eventuais ameaças e reações das minorias.   

Assim, fica claro como é difícil e, até certo ponto, complexo estabelecer uma desconstrução e uma ressignificação desses valores e crenças, diante dos efeitos que o racismo imprimiu, geração após geração. Os desdobramentos processuais ocorridos podem sim, configurar uma castração social terrível e irreparável para milhares de negros. Tolhidos no seu ir e vir. Impedidos de ser e conviver na geografia das cidades e dos campos. Impossibilitados de conquistar seu aprimoramento intelectual e cultural. Eles vêm sendo assombrados por estigmas nefastos, o que significa que o racismo lhes imputou uma vida marginal.

O que é facilmente comprovável através da observação de campo. Um pouco de atenção para se descobrir qual é o nível de participação e presença dos negros na dinâmica da sociedade, e se descobre como eles estão invisibilizados ou mimetizados para conseguirem sobreviver aos desafios e opressões dos supremacistas. O racismo cobra inúmeros pedágios sociais em nome de uma aceitação, que na verdade é um direito universalmente consagrado, a igualdade.

Acaba, então, acontecendo inevitáveis duelos de força arbitrados pelo racismo; sobretudo, episódios de violência. Tratam-se de momentos em que o lugar de fala de quem sofre o racismo, mesmo sob fortes ataques de silenciamento, se expande e permite uma proposição discursiva e reflexiva capaz de garantir alguns passos à frente nos tabuleiros de negociações. Afinal, os holofotes tendem a propiciar elementos importantes nas construções narrativas que podem, quem sabe, se materializar em políticas públicas efetivamente antirracistas.

O que não quer dizer, que os movimentos antirracistas só operem mediante acontecimentos ruins. Não, o engajamento desses grupos e lideranças é contínuo e estruturado. Geralmente, suas ações acontecem nas escolas, nas universidades, nas associações de bairro, nas igrejas, nas rádios e TVs comunitárias, nos projetos sociais em geral.

E, embora, aparentemente anônimo, esse trabalho é muito significativo na construção da consciência sobre o racismo e os movimentos antirracistas. Durante protestos e passeatas, por exemplo, as pessoas não estão lá inflamadas somente por acontecimentos e fatos ruins; mas, especialmente, pelo entendimento em relação a sua presença e participação na mobilização coletiva em torno do assunto. A construção de conhecimento e educação cidadã é que conduz essas pessoas a sentirem vontade de se expressar, de se manifestar, de participar ativamente das mudanças que elas almejam para suas vidas e para o mundo.

Por isso, não é tão fácil respirar. É tanto esforço. Tanto empenho. Tanta dedicação, em nome de algo que deveria ser tão normal, mas não é. Para respirar temos que mudar. De jeito. De foco. De pensamento. De sentimentos. De olhar. Porque no fim das contas, “mudar é tão precioso como respirar e se não o fizermos livremente, a vida encarregar-se-á de o fazer por nós, mas de uma forma mais violenta e sem misericórdia. É o preço a pagar por nos deixarmos morrer por dentro e desfalecer tudo o que está à nossa volta há tanto tempo” (Gustavo Santos – escritor).