Pelos labirintos das linhas e das entrelinhas...
Pelos
labirintos das linhas e das entrelinhas...
Por
Alessandra Leles Rocha
Parece-me um total contrassenso
a ideia de que, pelo fato de estarmos em pleno século XXI, no auge da Ciência e
da Tecnologia, a civilidade e seus bons modos perderam valor e serventia, restando
à classe de atributos fora de moda. Afinal,
se a humanidade partiu da mais pura essência bárbara e foi gradualmente se domesticando
e apaziguando tais arroubos para caber nas diretrizes dos ordenamentos sociais,
a lógica parece ser que deveriam estar desfrutando do mais alto grau de
compostura. Entretanto, infelizmente, não é bem assim!
A deselegância saiu
do recinto mais privado e das motivações destemperadas pelo excesso de álcool e
substâncias delirantes para ganhar os espaços públicos de menor e maior cerimônia.
Em suma, perderam-se os filtros do bom senso e da boa educação de berço. Mas, é
bom que se diga que por tal razão, fala-se em demasia o que quer e, também, se
ouve em profusão o que não quer nessa via de mão dupla da ignorância comportamental.
Sim, é bom
esclarecer que não se trata de algo fomentado pela ignorância emergente da falta
de conhecimento, de letramento. Essa é uma ignorância pela ignóbil barbárie, a
qual ainda resiste nas entranhas mais profundas do ser humano, e que mede
forças com as diretrizes e protocolos construídos a fim de tentar manter a
sociedade em equilíbrio.
Talvez, por isso
mesmo, mereçam mais atenção. Enganam-se todos aqueles que pensam que as palavras
proferidas podem parecer vazias, etéreas, como uma névoa que se desfaz pelo ar.
Nunca se sabe em que corações e mentes encontram porto seguro para fazer eco,
para propagar a destilação venenosa de suas intenções, causando desdobramentos
e consequências a princípio inimagináveis.
O que alguns
desqualificam e chamam de mexericos, de fofocas, de “diz-que-me-disse”, são exemplos
corriqueiros dessa prática nociva. Mas, veja que mesmo assim, já fizeram muita
gente por aí até perder o emprego por “justa causa” tamanha a confusão
deflagrada. Sob um manto de “pseudo ingenuidade”, de alguém que só queria
manifestar opinião, busca-se atenuar a gravidade conjuntural pela ocultação de uma
verdade pétrea; as palavras jamais são desprovidas de sentido e direção. Não
existe falar só por falar. Tanto que há o discurso; mas, também, as suas
entrelinhas.
Não se pode esquecer
que o ser humano é um processo em franca ebulição. O fato de ter alcançado a
capacidade de construção e elaboração comunicativa não é garantia de que o
resultado disso seja sempre positivo. Entre a inteligência e a cognição dividem
espaços importantes às emoções e os sentimentos. Nada é tão racional ou tão
emocional, assim. O tempo, os interesses e as conjunturas, também,
desequilibram essa balança.
Por isso, se é tão
livre para pensar. A verdadeira e profunda catarse humana está no pensamento. Nesse
ambiente totalmente privativo e intransferível do ser. Ali as dicotomias, as incongruências,
os desalinhos, os delírios e os absurdos podem conviver sem sobressaltos, na
sua mais plena liberdade de expressão.
Mas, ao permitir verbalizar
ou manifestar em registro público o que era da ordem pessoal, os direitos, os
limites, os princípios são outros. Do individual para o coletivo há preceitos
intransponíveis. Fronteiras que não podem ser transgredidas pela vontade
particular, cujo tênue equilíbrio de suas linhas é o que mantém a convivência e a coexistência social em paz vigilante. Razão pela qual, é triste olhar ao
redor e encontrar tantos maus exemplos desse desserviço verborrágico se disseminando
pela sociedade. Tempos de mentiras fabricadas, de ódios reverberados pelos
meios tecnológicos. A existência humana sempre enfrentou desafios descomunais
para se ver atingida de maneira tão vil e desleal pelos seus próprios representantes. A
desumanidade que reveste alguns indivíduos, por sorte, não traduz o coletivo;
embora, cause muito desconforto, estranhamento e constrangimento.
De repente, fica
claro que o mal do mundo não chega mais só pelas más ações e condutas; mas, sobremaneira,
pelas palavras. Em meio a pior de todas as tragédias já experimentadas pelo ser
humano nessa contemporaneidade, há pessoas indiferentes e silenciosas ao sofrimento, à morte,
ao desalento causado pela Pandemia do COVID-19; mas, totalmente imbuídas em
fazer da vida um palco de discursos infames e tragédias éticas e morais.
Portanto, é como
escreveu José Saramago, em seu Ensaio
sobre a Lucidez, de 2004, “Há que ter
o máximo de cuidado com aquilo que se julga saber, porque por detrás se
encontra escondida uma cadeia interminável de incógnitas, a última das quais,
provavelmente, não terá solução”; afinal de contas, e não menos importante,
“que monstruosas coisas é capaz de gerar
o cérebro”, especialmente quando a vaidade e a soberba lhe tomam de
assalto.