Reflexão para esse e todos os dias!


 Questões de Vida e Morte



Por Alessandra Leles Rocha




Pois é... Vírus1 matam. Isso assusta, desespera, provoca reações diversas. Um elemento ínfimo se comparado a tantos seres vivos é capaz de desestabilizar a ordem e o progresso no mundo, de modo que, sem exageros, a raça humana se curva diante dele. Que coisa! Porque seres humanos, também, matam e o resultado disso entre seus pares parece tão trivializado e “desimportante”.
Não falo só de tiros, facadas ou quaisquer ações decorrentes de armas. Seres humanos matam muito e diariamente em razão do desrespeito, da omissão, do descompromisso, da irresponsabilidade, do escárnio, da corrupção, do desemprego, da desigualdade,...
Quando um ser humano é morto, seja porque motivo for, ele não morre sozinho e, nem tampouco, morre apenas o seu corpo. Familiares, amigos, país e subjetividade, também, morrem. Ao contrário das estatísticas que computam um a mais em seus dados, a verdade é que cada morte é símbolo de um a menos.
Menos um para ser feliz, para compartilhar, para amar, para viver, para produzir, para comprar, para contribuir com impostos e a Previdência, para cuidar de quem se quer bem; enfim...
De repente começamos a perceber que a morte, também, é um divisor social; pois divide o morrer entre razões importantes e não importantes. Distante de ser pelo fato de alguns terem o obituário em destaque nos jornais mais renomados e outros não, ou porque serão cremados e outros enterrados em cova rasa, ou porque receberão coroas de flores em profusão e outros mal terão uma vela acesa para iluminar a passagem.
A importância e a não importância, a qual me refiro, diz respeito ao que queremos enxergar de risco à vida, enquanto vivos. Optar por atribuir aos fatores exógenos a parcela de culpa pela perda humana parece menos indolor. Bater no peito e admitir esse tipo de responsabilidade exige uma coragem e um sangue frio que não é para qualquer um; daí, subnotificar, invisibilizar, como forma de atenuar ou mitigar o peso na consciência. Como se isso fosse mesmo resolver.
Só que não. A indiferença não blinda ninguém. Fechar os olhos, virar o rosto, não se informar, não se posicionar, também, não. Qualquer um pode ver a sua história se encerrar por causa de outro ser humano. Um atropelamento, um condutor embriagado e/ou drogado, um hospital fechado, um remédio vencido,... talvez. Mesmo assim, a preocupação maior continua sendo em torno do imprevisível desempenhado pelo o que há além do humano.
No fundo, o que as pessoas não se dão conta é que seu comportamento social é viral. Sim, porque na medida em que negligenciam a sua responsabilidade coletiva abrem precedente para a proliferação da matança indiscriminada na sociedade. Como um corpo que não luta para debelar uma infecção virótica e sucumbe à vitória dos vírus.
José Saramago escreveu: “Se antes de cada ato nosso nós pudéssemos prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar” 2.
Essa desatenção, esse não olhar, não enxergar, não se responsabilizar é uma cegueira de proporção incomensurável. Uma opção assim não tem como não repercutir em desdobramentos catastróficos. Somos seres únicos, individuais, mas em razão de termos sido concebidos para viver em sociedade, a individualidade não nos outorga a prerrogativa da irresponsabilidade e da indiferença em relação ao todo. Sejamos, então, humanos e não, vírus.



1 Vírus sãos os únicos organismos acelulares da Terra atual. Os vírus são seres muito simples e pequenos (medem menos de 0,2 μm), formados basicamente por uma cápsula proteica envolvendo o material genético, que, dependendo do tipo de vírus, pode ser o DNA (Ácido Desoxirribonucleico), RNA (Ácido Ribonucleico) ou os dois juntos (citomegalovírus).
2 SARAMAGO, J. Ensaio sobre a Cegueira.  São Paulo: Cia. Das Letras, 1995.

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