Crônica do fim de semana...


Muros



Por Alessandra Leles Rocha




Trinta anos após a queda do Muro de Berlim, sempre é tempo de se falar sobre muros. Não sobre sua estética. Não sobre sua arquitetura. Não sobre a sua localização. Não sobre sua composição. Mas, sobre aquilo que não está contido em nenhum elemento dessa materialidade e, no entanto, é o que a torna tão terrível e brutal.
Muros são materializações de forças, desejos e “necessidades”, conscientes ou não. Cercas de arame farpado. Pedras sobrepostas. Tijolos e cimento. ...Tantos materiais para dar voz a um silêncio que grita a dor, o desespero, o medo, as rupturas e todos os seus vieses. Sim, porque muros traduzem um modo de defender, apartar, controlar; sobretudo, aquilo que incomoda, que desconforta, que não se admite, que não se compreende... Veja o que fazem os muros dos sanatórios, os muros das prisões, os muros dos cemitérios, os muros das antigas cidades.
A invisibilidade proposta por eles é de certa forma, um bálsamo para aliviar as tensões, as necessidades de explicações, os eventuais enfrentamentos... Sabe-se que há algo ali; mas, enquanto disposto naquele espaço não pode nos afetar diretamente. Eles remontam o modelo geográfico das memórias no inconsciente, criando mecanismos de seleção entre lembranças boas e ruins na prática da vida cotidiana. Entretanto, em relação aos muros do mundo real quase tudo gira em torno de elementos não tão agradáveis, pelo menos para alguns.
O pior é que a cada dia essa necessidade se acentua. A Pós-Modernidade expandiu os muros para além do real, de modo que são facilmente encontrados no mundo virtual. Bloquear. Deixar de Seguir. Silenciar. Ser um “hater”... São muros contemporâneos; mas, continuam sendo muros.
O que significa que os muros estão, na verdade, construídos dentro de nós, não precisando da geografia para acontecer. Trata-se de um último estágio da incapacidade que habita o ser humano. Algo que não consegue dialogar com a razão e, por isso, precisa ser posto a parte. E aí, caro leitor, não há Inteligência Artificial que dê jeito.
Porque há milhares de anos ou agora, no fundo cada um sempre foi um muro em si mesmo. Um muro constituído pela fragmentação de outros tantos, oriundos da imaginação ou da realidade. Veja o que faz a polarização ideológica, a intolerância religiosa, o racismo, a xenofobia, o sexismo, o bullying... Constroem muros que distorcem a percepção do indivíduo em relação ao mundo ou, então, transferem aos outros tudo aquilo que se quer rechaçar ou esconder a seu próprio respeito.
O resultado disso é uma sociedade distribuída entre muros; de modo que há uma desaprendizagem enquanto seres sociais. Dentro de seus muros se estabelece uma homogeneização de valores, de princípios, de comportamentos próprios, a tal ponto que, quando expostos, seja nas arenas virtuais tecnológicas ou nos espaços sociais cotidianos, eles não sabem como coexistir em consonância.
É como se a base biológica universal de todos eles, Homo sapiens, não fosse mais a mesma e isso lhes conferisse o direito de se considerar mais importantes, mais inteligentes, mais bem sucedidos, do que outros. De modo que haverá sempre algum grupo buscando essa dianteira, em um conflito sem fim.
Engana-se, porém, quem acredita que todos estão entre muros. Não, há muita gente que não se encaixa nesse perfil e vagueia a margem desse processo na esperança de que algum dia os muros deixem de existir. Tarefa difícil. Mas, certamente, se moldar a um padrão ou subjugar-se as vontades e quereres alheios é muito mais doloroso, sofrido. Para eles, aqui e ali, há em cada “grupo murado” questões que não lhes são caras e/ou pertinentes. O jeito, então, nesse caso, é seguir os próprios preceitos e não se importar muito com as distopias que se apresentam por aí.
Diante dessas considerações, temos a certeza de que o Muro de Berlim, também chamado Muro da Vergonha, não só representou a materialização das forças de poder durante a Guerra Fria, ao dividir Berlim entre Soviéticos e Capitalistas; mas, replicou toda a dor, todo o sofrimento, toda a desolação do pós-guerra alemão com o mundo; como fazem quaisquer outros muros, formalmente erguidos ou não. Porque em todo muro reside à sina da incapacidade de se romper a rudeza e a indiferença ou de se demover o ser humano dos valores imperialistas intrínsecos ao seu DNA.
Aí reside o meu lamento, pois Isaac Newton estava certo, “construímos muros demais e pontes de menos”, e isso nos afasta da encantadora possibilidade proposta por Caio Fernando Abreu, “talvez você pule esses três ou quatro muros que nos separam e segure a minha mão, assim, ofegante, pra nunca mais soltar”.  

Comentários

Os textos mais lidos